O governo de Santa Catarina anunciou recentemente uma iniciativa que promete “cuidar” dos moradores em situação de rua com o uso de tecnologia de ponta: reconhecimento facial, monitoramento por GPS e sistemas inteligentes de rastreamento de presença. A proposta, segundo o discurso oficial, é garantir proteção, assistência social e mais eficiência nas políticas públicas voltadas a essa população. Mas, para muitos especialistas, a medida levanta uma pergunta incômoda: trata-se de cuidado — ou de vigilância disfarçada?
A ação prevê o cadastramento biométrico de pessoas em situação de rua em todo o estado. Os dados serão cruzados com bancos de segurança pública, assistência social e saúde. Em seguida, sensores e dispositivos com tecnologia de georreferenciamento passarão a rastrear seus deslocamentos em tempo real. O projeto-piloto já está em fase de testes em algumas cidades catarinenses, como Joinville e Itajaí.
O argumento das autoridades é claro: com mais dados, será possível planejar melhor os serviços, identificar reincidências, acompanhar tratamentos e reduzir situações de risco. Mas a proposta tem gerado controvérsia. Entidades de direitos humanos e pesquisadores da área social alertam para o risco de criminalização da pobreza, violação de privacidade e reforço de estigmas sobre pessoas em extrema vulnerabilidade.
“Não se combate a exclusão social com algoritmos. O que essas pessoas precisam é de política habitacional, saúde, comida e dignidade. Rastreá-las como se fossem objetos pode produzir o efeito contrário ao pretendido”, afirma uma assistente social que acompanha moradores de rua em Florianópolis e prefere não se identificar. A crítica é partilhada por organizações como o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), que classificou a proposta como “invasiva e desproporcional”.
Há também o risco da má utilização dos dados. Uma vez coletadas as informações faciais e os trajetos dessas pessoas, quem garante que elas não serão compartilhadas com outros órgãos ou utilizadas para fins de segurança, repressão ou discriminação? Em um país com histórico de violência institucional e racismo estrutural, a vigilância dirigida a populações vulneráveis costuma ampliar desigualdades, não reduzi-las.
Santa Catarina pode estar diante de uma encruzilhada moral. É possível aplicar tecnologia a favor da inclusão social — mas isso exige escuta, cautela e garantias éticas. Se o projeto for implementado sem debate público profundo e sem salvaguardas claras, ele corre o risco de ser menos um avanço na assistência social e mais um espelho do velho controle sobre os invisíveis.